Novembro Negro
20 anos da Lei 10.639/2003
O que mudou?
Como desdobramento dos inúmeros eventos históricos, do contexto político, das lutas individuais e coletivas da sociedade civil, organizações e instituições públicas e privadas, em 9 de janeiro de 2003 foi aprovada a Lei 10639, que altera a Lei 9.394/96
(a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB) para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática história e cultura afro-brasileira. Em 2008, para atendimento das demandas históricas, a LDB foi novamente alterada e complementada pela Lei nº 11.645/08, para incluir o ensino de história e cultura indígena.
O nosso projeto do 4o bimestre é o Projeto Consciência Negra. Escolhemos o momento para visitar a Lei 10.639/23 que comemora 20 anos da sua criação. Hora de refletir sobre a prática da educação antirracista e os caminhos que ainda precisam percorridos.
Educação e o Enfrentamento ao Racismo
No período colonial brasileiro (1530 – 1822), podemos identificar inúmeras formas de resistência que pavimentaram os caminhos da educação para a população negra. São exemplos a formação dos quilombos, os fluxos e trocas culturais, as religiões de matrizes africanas no Brasil, bem como outras manifestações em defesa de seus saberes e contra a exclusão e a imposição dos códigos culturais europeus. Como destacaram Geraldo da Silva e Márcia Araújo, "as iniciativas individuais voltadas à educação no período colonial, as escolas profissionais e técnicas, bem como as escolas dos movimentos negros muito contribuíram para a igualdade de direitos da população negra"
Do período de transição entre o Brasil Colônia e Império, destacamos a biografia de Negro Cosme (1800 ou 1802-1842), líder da Guerra do Balaios (1838-1841) no Maranhão e o registro de uma escola criada pelo Negro Cosme, no Quilombo da Fazenda Lagoa-Amarela, em Chapadinha, no estado do Maranhão, para o ensino da leitura e escrita aos escravos aquilombados.
Para exemplificar algumas formas de luta no Brasil Imperial (1821-1889), temos a história de Maria Firmina dos Reis (1822-1917), grande escritora negra, autora do primeiro romance abolicionista brasileiro, Úrsula, em 1859. Maria Firmina fundou uma escola para crianças pobres.
Podemos destacar também as iniciativas do professor Pretextato Passos e Silva que, em 1855, abriu uma escola no Rio de Janeiro para crianças pretas e pardas, as quais estavam excluídas do processo de escolarização por meio de legislações e mecanismos sistemáticos de racismo. Conforme pontuou Joana Célia dos Passos (2012), o Decreto nº 1.331, de 17 de fevereiro de 1854, já estabelecia que nas escolas públicas do país não seriam admitidos escravos e que a instrução pública para adultos negros dependia da disponibilidade de professores.
Existe uma vasta produção acadêmica sobre as iniciativas individuais e coletivas da população negra no período que circunscreve o Brasil Colonial e a República. O livro A educação dos negros: uma nova face do processo de abolição da escravidão no Brasil, de Marcus Vinícius Fonseca, é uma referência importante para entender a relação do movimento abolicionista com a questão da educação no século 19.
Outra referência fundamental para a compreensão do movimento de libertação no Brasil é o livro Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868-88), de Ângela Alonso. Nesse período, viveram e atuaram personalidades negras fundamentais para a luta por abolição, como o advogado Luiz Gama (1830-1882), o engenheiro André Rebouças (1838-1898) e o farmacêutico e jornalista José do Patrocínio (1853-1905), cujas biografias estão registradas no livro Escritos de Liberdade: literatos negros, racismo e cidadania no Brasil oitocentista (2018), da historiadora Ana Flávia Magalhães Pinto.
Para conhecer outras histórias de mulheres negras e sua participação na educação, sugerimos os livros Mulheres negras na educação brasileira (2017), de Tais Freitas, e Mulheres negras no Brasil escravista e do pós-emancipação, de Giovana Xavier, Juliane Farias e Flávio Gomes.
Dando um salto temporal, destacamos algumas iniciativas da população negra no Brasil República (1889). Na década de 1920, a imprensa negra, por meio da circulação de jornais como O Monelike, O Kosmos, A liberdade, o Clarim da Alvorada, marca a continuidade da luta em defesa do direito à educação da população negra. Os jornais também tinham a função estratégica de informar essa população sobre locais de cursos, centros de formação e alfabetização.
Em 1931, a fundação, em São Paulo, da primeira organização negra pós-abolição, a Frente Negra Brasileira (FNB), que posteriormente estabeleceu-se em outros estados brasileiros, levantou no cenário nacional a importância do ensino da cultura afro-brasileira. A FNB tinha como proposta unificar, educar e orientar a população negra.
No ano de 1944, o Teatro Experimental do Negro (TEN), liderado por Abdias Nascimento, articulou arte e educação, apresentando críticas à FNB por suas concepções integracionistas e adesão aos códigos culturais eurocêntricos. Apesar das críticas, a FNB é lembrada por seu papel fundamental na educação da população negra, como mostra o depoimento do militante Aristides Barbosa: "na Frente Negra, eu fiz o curso de admissão ao ginásio, estudei música e inglês. Tudo isso me ajudou nos meus objetivos de vida. Depois eu dei aulas [...]"
Segundo Henrique Cunha Júnior (2003), entre 1937 e 1970, além da FNB e do TEN, existiram inúmeros movimentos de consciência negra no Brasil. São lembrados grupos e personalidades negras como a poetisa Madalena de Sousa, da Associação Cultural do Negro de São Paulo (1954-1965), o Teatro de Solano Trindade e o Congresso da Juventude Negra, que, em 1949, discutiu pela primeira vez o acesso do negro à universidade. Cunha Júnior (2003) também registra o movimento artístico e cultural no centro de São Paulo (1968-1980), o Grupo Cultural Palmares (1971-1978), os blocos afros – por exemplo, o Ilê Aiyê (1974), de valorização da estética negra e circulação de conhecimento sobre a cultura africana –, o Instituto da Cultura Negra (IPCN) (1975), o Grupo de Trabalho André Rebouças (GTAR) e o Centro de Arte e Cultura Negra (CECAN).
Para Cunha Júnior (2003), esses e outros grupos e personalidades presentes em todo o território nacional pavimentaram os caminhos para a unidade das organizações negras que deu origem ao movimento negro brasileiro. O assassinato do feirante Robson Silveira da Luz, bem como outros casos de racismo e violência policial que vinham ocorrendo no Brasil, impulsionaram a mobilização da juventude negra e, em 7 de julho de 1978, uma manifestação histórica na escadaria do Teatro Municipal de São Paulo resultou na fundação do Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNUCDR), atualmente denominado Movimento Negro Unificado (MNU). Naquele contexto, o movimento reuniu dezenas de grupos e organizações negras de todo o país para fazer frente à ditadura militar.
A fundação do MNU e as conexões estabelecidas com diferentes estados brasileiros fortaleceram as discussões e os questionamentos sobre a educação eurocêntrica ofertada na escola brasileira. Na mesma medida em que enunciavam os questionamentos, também apresentaram proposições e ampliaram as demandas para a construção de uma educação antirracista.
A década de 1990, embora mais tímida, também foi marcada pela continuidade das lutas em defesa da democracia, das ações afirmativas e pela construção de uma sociedade antirracista. Nesse contexto, a Marcha Zumbi dos Palmares, que ocorreu em 1995, em Brasília, foi um importante marco de mobilização social. Outro evento importante que, nos anos 2000, indicou importantes avanços na agenda de equidade racial foi a III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, realizada em Durban, África do Sul, em 2001, quando o estado brasileiro assumiu compromissos para a promoção de políticas e ações antirracistas.
Ao longo do século 21, surgiram inúmeras organizações, grupos, entidades e coletivos de atuação na agenda das relações étnico-raciais e equidade racial. Atualmente, a Coalização Negra por Direitos é formada por cerca de 232 organizações negras que atuam na promoção de ações e definições de agendas para incidência na política.
Para Saber mais
COLEÇÃO ANTIRRACISTA
A questão racial brasileira na perspectiva do pensamento antirracista e decolonial é foco da série “Coleção Antirracista”. Com curadoria e direção de Val Gomes e realizada pela produtora Olhar Imaginário, a série é composta por oito documentários curtos (entre 11 e 14 minutos de duração) e tem como público-alvo pessoas, instituições e empresas com interesse em combater o racismo e investir em ações inclusivas e antirracistas.